Caldeirão

Não toques o sino, antes de ver a estrada,
nem vistas o sonho, antes da madrugada.
As estrelas cadentes jazem esquecidas,
como as tochas perenes, na caravana da vida.
O pássaro da noite entoou o cântico da aurora.
A alma elegeu o náutilo para esboçar o traçado das horas.
E a paisagem, fixada na retina,
nunca foi registrada sob as pálpebras.
Enquanto na terra ou na guerra lá fora,
as caravelas suplantam as caravanas,
os sinos das igrejas dobram-se às danças,
até que a natureza embale, ao som de uma cantiga,
em berço áureo, a criança prometida.
Sob o manto frouxo, o espanto morto
é um cadáver que jaz à beira da calçada,
abandonado por uma alma tenra e apressada
que, antes de ver a si, apostou corrida.
No alto da madrugada,
entre dores no peito e náusea,
para o Minotauro, Teseu perde a batalha,
até lembrar de uma estranha saudade
que trazia, no fio de Ariadne,
a lembrança da origem esquecida.
Quanto mais corre, mais o herói perde a vida,
até que um dos seres da terra, duende ou fada,
subtrai-lhe a respiração para lembrá-lo de que ainda respira.
Resgata, do perpétuo oblívio, os números aprendidos na escola,
para reaprender a contar e reencontrar as batidas.
Recorda-se, então, de agarrar-se à vida:
ensaia inspirar o odor das folhas
e expirar a dor das bolhas, da fervura, acumuladas,
em uma contagem atrapalhada e tosca,
que mais parece uma viagem a esmo e longa.
Não toques o sino, antes de ver a estrada,
nem vistas o sonho, antes da madrugada.
Não caias vítima sob a dura mão do teu heroi oculto:
caldeirão alado, tirânico e absoluto.
Põe-te a carpir o luto do ritmo das horas,
sempre mais apressadas nas veias
do que nas areias do tempo.
Entre a partida e o destino, toda a beleza
e a cor da viagem, toda a essência
é perdida para a vã aflição e a efervescência.
Não permitas ao destino suplantar o caminho,
nem residas no epitáfio, antes de na lápide.