Desmorta

Eu mal me sentia viva então... ... eu deveria ter avisado o não à vida que eu pretendia dar. É uma pena que eu tenha esquecido de enviar um memorando! Eu poderia ter mandado publicar um obituário antecipado mas se eu falhasse, eu teria mentido, e isso não seria admitido!, tampouco perdoado! Eu esqueci o memorando, enquanto procurava a minha imagem no espelho que insistia em refletir a parede de azulejos atrás de mim. E o tempo parou... E, depois, na hora de visitas do hospital, eles foram todos retirados por enfermeiros abismados ao ouvir:
"Tu nos traíste! Tu me traíste! Se tivesses morrido de alguma doença, a tua alma ainda valeria alguma coisa! Por que tiveste de trair a todos e ofender a Deus?! A vida é um presente que ele te deu. Tu sempre só nos deste desgosto. Deus me perdoe!, mas seria preferível que tivesses morrido por doença! Eu faço tudo o que eu posso para salvar a tua alma. E tu jogas todos os meus esforços fora! Esse corpo é só uma casca, não vale absolutamente nada. A alma é o que importa. Antes tivesses morrido por doença, do que viver em completa danação! Abominação! Isso é uma abominação!"
Eu mal me sentia viva então, eu ouvia tudo anestesiada. Sedada, eu não sentia nada. Então, eu pensava: "eles estão frustrados porque eu falhei." Eu precisei estar sedada para isso finalmente ver. Meus sucessos sempre foram fracassos. E dessa vez, eu fracassei de vez! Eu não lhes deixei a almejada perda que teria o poder de dar trégua às suas batalhas internas e uni-los em autocomiseração. Eu lhes sequestrei a autocomiseração que teria o poder de torná-los estrelas dignas de especial atenção:
"Meu Deus, o que eu faço? Eu perdi a minha filha tão querida! Há dor pior que a minha?"
Sempre foi isso... ... desde o princípio. Eu mal me sentia viva então... E só então eu tive a confirmação de algo que o corpo já sentia, sob a forma de doença, e eu não queria aceitar... ... por que ninguém me protegia, apenas me trancava e punia; ... por que permitiam que crianças maiores me maltratassem e me exigiam constante e repetitivo perdão; ... por que eu tive de libertar a besta ainda pequena, e agredir em autodefesa! Eu libertei a besta... ... até um dia ela também cansar! Minha existência ofendia o sol e a estrela... ... mas não eram madrasta e padrasto como referidos nos contos de fada... Os contos mentiram para mim... Onde estavam o leão e a leoa para proteger os seus filhotes? Na escuridão, disputando os holofotes... Eu mal me sentia viva então... E então, eu percebia no hospital histórias que se repetiam, tão diferentes, tão iguais a minha! E uma voz acolhedora dizia:
"Vocês não estão aqui trancados para proteger os outros, como querem aqueles que os chamam de loucos. Os loucos estão todos lá fora! Vocês estão aqui trancados... ... cuidados e protegidos dos outros, dos verdadeiros loucos que os adoeceram. Adoecer, às vezes, é a única forma de sobreviver. Enlouquecer, às vezes, é a única forma..."
Lanternas no escuro, e eu me assustei. Voz baixa no ouvido:
"É tua primeira noite aqui... Nós fazemos rondas à noite para guardar o sono dos monstros que os invadem e os impedem de dormir. Calma, agora é hora de dormir... Não te assusta! Nós fazemos rondas para guardar o sono, para protegê-los de terríveis sonhos... ... pesadelos cifrados de realidade."
Alguns despertavam... ... e outra voz perguntava:
"Por que estamos aqui trancados?"
E a voz acolhedora sussurrava:
"Ora bolas! Para ninguém vir amanhã atrapalhar o nosso carteado! Que pergunta... Por ora, seus loucos, é hora de dormir..."
Irromperam todos... Irrompemos todos nós, os loucos, em desvairadas gargalhadas! Eu mal me sentia viva então... E então, depois de muito tempo lá e em nenhum outro lugar... Eu mal me sentia viva então... ... pela primeira vez, em muito tempo, lá e em nenhum outro lugar eu conseguia dormir...
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